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Medida Provisória nº 992, de 16 de julho de 2020: o compartilhamento da alienação fiduciária

Atualizado: 20 de jul. de 2020

* Por Geraldo Felipe de Souto Silva


A alienação fiduciária consiste em negócio jurídico amplamente utilizado no mercado brasileiro. Perfaz-se quando o credor fiduciário adquire a propriedade resolúvel e posse indireta de coisa móvel ou imóvel, em garantia de financiamento efetuado pelo devedor fiduciante, possuidor direto da coisa. Assim, por meio da alienação fiduciária o bem a ser adquirido passar a ser do credor fiduciário (geralmente instituição financeira), que terá a propriedade até que o devedor fiduciante pague a integralidade do financiamento.

No que importa aos bens imóveis, a alienação fiduciária é regida pelos artigos 1.367 e ss. do Código Civil e pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Importante ressaltar que a alienação fiduciária de bens imóveis poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI.


No cenário negocial pátrio, há larga utilização do instituto da alienação fiduciária no âmbito das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito. conforme previsto de modo expresso na Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017. Lei essa que foi profundamente alterada pela Medida Provisória nº 992, de 16 de julho de 2020.


A Medida Provisória nº 992, de 2020 permite que o devedor fiduciante possa utilizar o bem imóvel já alienado fiduciariamente como garantia em autônomas operações de crédito de qualquer natureza, com o credor fiduciário da operação de crédito original. Trata-se do compartilhamento da alienação fiduciária.


Quanto ao principal conteúdo da norma, chama-se atenção para o fato de haver a previsão expressa de o devedor fiduciante poder “utilizar o bem imóvel alienado fiduciariamente como garantia”. Trata-se de interessante questão, uma vez que o devedor fiduciário não possui a propriedade efetiva do imóvel, que somente lhe será transmitida após a quitação do preço total da aquisição. Até a data da quitação do preço total da aquisição, é o credor fiduciário quem detém a propriedade do imóvel sob condição resolutiva, consoante acima explicitado.


Sem embargo de o devedor fiduciante, na melhor técnica jurídica, não poder ofertar o bem imóvel atual (de per si) em garantia, tem-se por possível a formatação segura da novel garantia pretendida.


Os direitos eventuais são aqueles que orbitam a legítima expectativa jurídica e não apenas fática, uma vez que circunstâncias materiais concernentes ao seu aperfeiçoamento já se conformaram. No âmbito da alienação fiduciária, o devedor fiduciante é legítimo titular do direito eventual de aquisição do bem imóvel, direito este que possui plena repercussão econômica, bem como expressa proteção legal constante no artigo 130 do Código Civil (Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo).


De sua vez, os direitos eventuais decorrentes de direitos creditórios ou aquisitivos advindos de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis podem ser objeto de caução[1] (garantia de uma dívida) em favor do credor fiduciário como elemento de nova garantia envolvendo como pano de fundo o mesmo bem imóvel. Ressalte-se que a caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis no âmbito das operações de financiamento imobiliário é prevista expressamente, como direito real, no inciso III do art. 17 da Lei nº 9.514, de 1997.

Destarte, a caução ora em destaque se difere da alienação fiduciária compartilhada, uma vez que a primeira decorre necessariamente de direitos créditos advindos de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis, enquanto a segunda não possui a citada limitação – poderá ser constituída em operações de crédito de qualquer natureza.


A despeito da diferença acima apontada, não haveria óbice jurídico à previsão normativa do instituto da alienação fiduciária compartilhada como nova espécie de caução real de direitos aquisitivos. A nova caução legalmente estabelecida importaria em oferta de garantia dos direitos aquisitivos de alienação fiduciária de imóveis qualquer que fosse a natureza da operação financeira originária (seja decorrente de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis ou não). Outrossim, do mesmo modo, não haveria na nova garantia limitação relacionada à natureza da operação de crédito a ser garantida.

Neste contexto, a instituição de caução real de direitos aquisitivos não importaria em prejuízo às demais disposições da Medida Provisória nº 992, de 2020, pois tratar-se-ia de caução real estrita e umbilicalmente vinculada ao negócio originário de alienação fiduciária.


Em razão de sua natureza de direito real, estaria mantida a eficácia imediata da operação derivada, bem como a segurança de todas disposições formais da Medida Provisória nº 992, de 2020, em especial das previsões de ingresso do título no fólio real (art. 9º-B, caput), e de que o inadimplemento e a ausência de purgação da mora, de que trata o art. 26 da Lei nº 9.514, de 1997, em relação a quaisquer das operações de crédito, faculta ao credor fiduciário considerar vencidas antecipadamente as demais operações de crédito contratadas no âmbito do compartilhamento da alienação fiduciária (inciso VII do art. 9º-B).


Caso mantida a dicção legal acerca da possibilidade de o devedor fiduciante dar em garantia o próprio “bem imóvel alienado fiduciariamente”, pode ser inviabilizado juridicamente o desígnio pretendido pelo legislador. A oferta do próprio bem imóvel em seu todo como garantia pelo devedor fiduciante somente pode assim ser realizada como propriedade superveniente.


Segundo a dicção legal constante no § 3 o A do artigo 1.361 do Código Civil, “A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.” Há, inclusive, Enunciado da Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal neste sentido (nº 506):


Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.

Desta forma, caso a alienação fiduciária compartilhada se refira à propriedade superveniente, há frontal antagonismo com as disposições normativas respeitantes à operação de crédito derivada, em especial das atinentes à persecução da mora de modo conjunto (envolvendo ambas operações de crédito) por parte do credor fiduciário. Isso porque a propriedade plena em favor do devedor fiduciante apenas terá eficácia se, e quando, a propriedade fiduciária garantidora do primeiro financiamento for cancelada em razão de sua quitação, passando ao domínio pleno do fiduciante.


Finalmente, consigne-se que a leitura de que a condição resolutiva poderia se dar de modo contínuo, ou seja, no decorrer do pagamento por parte do devedor fiduciante haver a resolução parcial e evolutiva da propriedade fiduciária, além de afrontar expressamente o art. 25 da Lei nº 9.514, de 1997, implica no perigoso esvaziamento da aplicação das regras de mora constantes no art. 26 e ss. da mesma Lei.


Embora a Medida Provisória nº 992, de 2020 tenha como primado o estímulo ao crédito nesse delicado momento da economia nacional, tem-se por imperiosa a integral observância dos institutos de direito civil que guarnecem a louvável proposição normativa.

[1] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau?. ANOREG. Disponível em <https://www.anoreg.org.br/site/2009/08/24/imported_13551/>. Acesso em 17 jul. 2020.


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