Por Geraldo Felipe de Souto Silva
Como ressaltado no tema anterior “O que os pais precisam saber para venderem bens aos seus filhos?”, a transmissão de bens dos pais para filhos é uma realidade quase diária dos serviços extrajudiciais notariais. A doação entre ascendentes e descendentes possui peculiaridades próprias, que devem ser observadas, entendidas e respeitadas para o bom fim pretendido.
Inicialmente, ressalva-se que a propriedade móvel se transfere pela tradição da coisa e a propriedade imóvel transfere-se pelo registro do contrato no Cartório de Registro de Imóveis. Dessa forma, o contrato de doação traz somente o compromisso do outorgante doador em transmitir a propriedade, denotando efeitos obrigacionais. Porquanto não haja a tradição da coisa móvel ou o registro imobiliário da coisa imóvel, a eficácia da transmissão do bem não restará completa.
Nessa primeira parte, serão tratadas as peculiaridades dos contratos de doação entre ascendentes e descendentes:
· NATUREZA JURÍDICA
O negócio jurídico da doação possui como elementos caracterizadores:
(i) unilateralidade, tendo em vista que tão somente o doador assume deveres em face do donatário (doação simples e pura);
(ii) gratuidade, uma vez que somente o doador será onerado sem que haja qualquer contraprestação a ser prestada pelo donatário (doação simples e pura);
(iii) comutativididade, como regra geral, uma vez que as prestações são conhecidas pelas partes;
(iv) consensualidade, uma vez que se aperfeiçoa com a manifestação de vontade das partes, independentemente da tradição ou do registro imobiliário. Excepciona-se a doação manual (aquela que versa sobre móveis e de pequeno valor) que, segundo disposto no parágrafo único do artigo 541 do Código Civil, possui como requisito de validade a incontinenti a tradição, a qual possui natureza real;
(v) a formalidade contratual escrita é exigida em relação aos bens móveis (artigo 541 do Código Civil) e imóveis, enquanto a solenidade da escritura pública advirá quando o valor do imóvel objeto do negócio for superior a 30 salários-mínimos (artigo 108 do Código Civil). Nada obstante, será informal, ou seja, não escrita na modalidade manual (aquela que versa sobre móveis e de pequeno valor), dispensando-se a forma escrita (artigo 541 do Código Civil);
(vi) tipicidade, pois se encontra regulado no Código Civil (artigos 538 e ss.).
· CONSENTIMENTO
Ao contrário do contrato de compra e venda, na doação de ascendentes para descendentes os outros descendentes NÃO devem consentir expressamente. Assim, caso algum dos pais deseje doar algum bem ou direito a filho ou filha os demais descendentes não precisam anuir com a respectiva doação.
Se o doador for casado no regime da comunhão universal ou no regime de comunhão parcial de bens e da separação obrigatória, nos dois últimos regimes sendo o bem comum, ambos os cônjuges deverão figurar como doadores.
Caso o doador seja casado no regime de comunhão parcial de bens ou da separação obrigatória de bens e o bem doado seja particular, ou no regime da participação final nos aquestos, será necessária a outorga conjugal. Será dispensada a outorga conjugal se o doador for casado pelo regime da separação convencional de bens ou da participação final nos aquestos se convencionada neste regime a livre disposição dos bens imóveis particulares no pacto antenupcial (vide 1.647, inciso I, e 1.656, ambos do Código Civil).
O consentimento se aplica à união estável?
Entende-se que as regras sobreditas acerca da participação do cônjuge na doação aplicar-se-ão de igual modo nas uniões estáveis, caso sejam publicizadas no momento da lavratura da competente escritura pública ou estejam averbadas no Cartório de Registro de Imóveis. A aplicação deverá ser levada a efeito uma vez que inexiste distinção na aplicação dos regimes de bens no casamento e na união estável, de forma que a segurança jurídica dos negócios e resguardo dos direitos dos companheiros, bem como afastamento de prejuízos a terceiros de boa-fé exige a observância de tal mister.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, neste sentido, entende que a regra constante no artigo 1.647, inciso I, do Código Civil se aplica às uniões estáveis. Segundo a Corte, a invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente (REsp 1424275/MT).
Dessa forma, em razão do princípio hermenêutico segundo o qual ubi eadem ratio, ibi jus idem esse debet (onde houver a mesma razão, deve haver o mesmo direito), às uniões estáveis deve ser aplicada a mesma lógica jurídica dos casamentos no que diz respeito ao disposto no artigo 496 do Código Civil.
· ADIANTAMENTO DA HERANÇA
Em razão da natureza do contrato de doação, algumas regras especiais deverão ser observadas. Uma das mais importantes é a de que, como regra geral, as doações de ascendentes a descendentes importam em adiantamento do que lhes cabe por herança (artigo 544 do Código Civil).
Caso algum dos pais (doador) doe algum bem a seu filho ou filha (donatário), após o falecimento do doador os donatários deverão trazer o bem doado ou seu valor equivalente em dinheiro para que possa ser inventariado no âmbito do processo judicial ou extrajudicial de inventário. O ato de trazer os bens doados para que possam ser partilhados em razão da morte dos ascendentes doadores se chama colação, a qual tem por objetivo igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge ou companheiro sobrevivente. De acordo com os ensinamentos do professor Pablo Stolze a colação consiste no ato jurídico pelo qual o herdeiro/donatário leva ao inventário, em conferência, o valor do bem doado por ascendente seu, a fim de resguardar a legítima dos demais herdeiros necessários, mediante reposição do acervo (O Contrato de Doação: análise crítica do atual Sistema jurídico e os seus efeitos no Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, pp. 55-57).
Lembrando que de acordo com o artigo 1.846 do Código Civil, “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.
O que fazer se o filho donatário não mais possuir o bem?
Deverá o filho donatário trazer ao inventário, ou seja, colacionar o valor em espécie do bem. Mas o valor a ser devolvido ao inventário pelo filho que recebeu a doação deve ser aquele ao tempo em que foi feita a doação ou atualizado na data do falecimento do doador?
Há quanto a este específico ponto antinomia de leis. De acordo com o artigo 2004 do Código Civil, “os bens serão conferidos na partilha pelo que então se calcular valessem ao tempo da liberalidade”. Por outro lado, segundo artigo 639 do Código de Processo Civil, “calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucessão.”
Nada obstante, de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1698638/RS), “(...) em se tratando de questão que se relaciona, com igual intensidade, com o direito material e com o direito processual, essa contradição normativa somente é resolúvel pelo critério da temporalidade e não pelo critério de especialidade”. Dessa forma, o valor a ser colacionado no caso de o donatário não possuir mais o bem deverá ser aquele que tiver ao tempo da abertura da sucessão.
O doador pode dispensar a colação do bem doado?
É possível que o ascendente doador dispense a colação (vide artigo 2.006 do CC). Dessa forma, na escritura pública de doação deverá constar expressa e inequivocamente a declaração do doador de que o objeto doado integra a parte disponível de seu patrimônio, ou seja, a metade do seu patrimônio não pertencente à legítima dos herdeiros necessários.
A dispensa de colação pode ser realizada após a lavratura da escritura pública de doação?
Sim. O doador e donatário poderão lavrar nova escritura pública de doação ratificando os termos anteriores e aditivando a dispensa da colação em seu bojo, sendo que a ratificação retroagirá à data da doação originária (STJ, REsp 440.128/AM).
Qual o momento de conferir se a doação excedeu a parte disponível do doador?
A parte disponível do doador, ou seja, a metade do seu patrimônio total, será considerada para fins de dispensa de colação no momento da liberalidade e não no momento do óbito do doador.
Assim, o excesso na doação (invasão da legítima) é apurado levando-se em conta o valor do patrimônio do doador ao tempo da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador (STJ, AR 3493/PE).
Qual o prazo para os outros herdeiros anularem a doação que exceda a parte disponível do doador?
Caso na doação de ascendentes em favor de descendentes seja dispensada a colação e o valor da doação seja superior ao percentual de 50% do patrimônio do doador (chamada de doação inoficiosa), a ação de nulidade deverá ser proposta pelos demais descendentes ou cônjuge ou companheiro herdeiro no prazo de 10 anos a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular (STJ, REsp 1049078/SP).
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